Quando eu era pequenino, havia, dizem agora, um regime
autoritário. Um regime que eu não senti porque, em tudo, aquilo era certo. Era
a continuação da minha educação e valores familiares (à excepção do pai
ausente).
Era a segurança de não haver diferenças. Tudo tão estável e
sereno como a sombra dos pinheiros e o calor das amoras.
Acabei por sentir tudo aquilo
quando deixou de existir, quando afinal a liberdade é que era boa, apesar de me
assustar.
Naquele tempo em que o regime era
certo, ser crismado era então muito mais que um mestrado. Agora que o regime é
outro, a minha fé é mais genuína (no mínimo por achar que é decidida por mim).
Nunca quis questionar a fé, a
religião ou a igreja. Ela é verdade porque não pode ser mentira. Ela é o melhor
porque pensar numa alternativa seria aterrador. A lucidez pode doer e prefiro
ser, por opção, enganado. Não quero, em boa verdade, por opção, conhecer
opções.
Fui quase rico, não fora a
ruindade de muitos. E seria tão diferente se não tivesse passado pelos
episódios banais de quem divide uma sardinha por seis. Fosse tudo diferente e
não daria eu hoje o valor que dou a tanta coisa tão pequena.
Pai! Pai? Mãe.
Mãe, tenho saudades. E ainda
choro.
Nasci no ano em que dizem ter ido
o primeiro homem ao Espaço. Loucos.
E afinal de contas, a partir de onde é que é Espaço?
Sei o que vejo. Desconfio do que
falam e duvido da propaganda.
Gosto tanto de ouvir o acordeão.
Há muita coisa que gostava de ver
para acreditar que existe. Gostava de ver sítios, vilas e cidades, não fora
preciso embarcar e voar. Gosto da terra.
Sempre gostei. Somos iguais.
E o medo do escuro?
Perdi-o
quando cresci e voltei a ganhá-lo quando o ganhaste.
A necessidade de aceitação é
coisa tramada. Os outros. Sempre os outros.
Será porque eu não faço sentido
sem os outros?
Eu não posso ser sozinho.
Nunca fui completo sozinho.
Nem
incompleto.
Poucas foram as vezes em que me
deixaram só. Mas por bons motivos. E a ansiedade de vos esperar
compensou sempre. Às vezes com prendas. Nunca cacei moscas com vinagre.
Maricas, talvez.
Mas se não vos tivesse mais?
Daria
tempo para que viessem outros?
Medo. Tal o medo que às vezes choro em segredo.
São os outros que diferem de mim
ou eu que difiro dos outros?
Angustia-me e satisfaz-me ser diferente. Ora seria mais simples ser mais igual, ora sou mais pessoa por ser
diferente.
Se não fosse o que sou, tinha
sido carpinteiro. Gosto de tocar e cheirar a madeira. O fruto da terra transformado pelas minhas mãos.
Gabo-me dos pequenos feitos que a minha obsessão
exige. Sou perfeccionista.
Somos diferentes nisto. Tu não consegues.
Tinha sete anos ou menos quando ateei fogo no mato. Uma caixa
de fósforos era um deleite para mim e dei-lhes uso, claro. Se fosse hoje dava
prisão.
As tuas brincadeiras aos sete anos também dariam prisão no meu tempo.