terça-feira, 5 de março de 2013

As cartas que o meu pai me há-de escrever. Parte I – As cerejeiras


Quando eu era pequenino, havia, dizem agora, um regime autoritário. Um regime que eu não senti porque, em tudo, aquilo era certo. Era a continuação da minha educação e valores familiares (à excepção do pai ausente).
Era a segurança de não haver diferenças. Tudo tão estável e sereno como a sombra dos pinheiros e o calor das amoras.
Acabei por sentir tudo aquilo quando deixou de existir, quando afinal a liberdade é que era boa, apesar de me assustar.

Naquele tempo em que o regime era certo, ser crismado era então muito mais que um mestrado. Agora que o regime é outro, a minha fé é mais genuína (no mínimo por achar que é decidida por mim).
Nunca quis questionar a fé, a religião ou a igreja. Ela é verdade porque não pode ser mentira. Ela é o melhor porque pensar numa alternativa seria aterrador. A lucidez pode doer e prefiro ser, por opção, enganado. Não quero, em boa verdade, por opção, conhecer opções.

Fui quase rico, não fora a ruindade de muitos. E seria tão diferente se não tivesse passado pelos episódios banais de quem divide uma sardinha por seis. Fosse tudo diferente e não daria eu hoje o valor que dou a tanta coisa tão pequena.

Pai! Pai? Mãe.

Mãe, tenho saudades. E ainda choro.

Nasci no ano em que dizem ter ido o primeiro homem ao Espaço. Loucos.
E afinal de contas, a partir de onde é que é Espaço?
Sei o que vejo. Desconfio do que falam e duvido da propaganda.

Gosto tanto de ouvir o acordeão.

Há muita coisa que gostava de ver para acreditar que existe. Gostava de ver sítios, vilas e cidades, não fora preciso embarcar e voar. Gosto da terra. 

Sempre gostei. Somos iguais.

E o medo do escuro? 

Perdi-o quando cresci e voltei a ganhá-lo quando o ganhaste.

A necessidade de aceitação é coisa tramada. Os outros. Sempre os outros.

Será porque eu não faço sentido sem os outros? 
Eu não posso ser sozinho. 
Nunca fui completo sozinho. 
Nem incompleto.

Poucas foram as vezes em que me deixaram só. Mas por bons motivos. E a ansiedade de vos esperar compensou sempre. Às vezes com prendas. Nunca cacei moscas com vinagre. Maricas, talvez.

Mas se não vos tivesse mais? 
Daria tempo para que viessem outros?
 Medo. Tal o medo que às vezes choro em segredo.

São os outros que diferem de mim ou eu que difiro dos outros?

Angustia-me e satisfaz-me ser diferente. Ora seria mais simples ser mais igual, ora sou mais pessoa por ser diferente.

Se não fosse o que sou, tinha sido carpinteiro. Gosto de tocar e cheirar a madeira. O fruto da terra transformado pelas minhas mãos.

Gabo-me dos pequenos feitos que a minha obsessão exige. Sou perfeccionista. 

Somos diferentes nisto. Tu não consegues.

Tinha sete anos ou menos quando ateei fogo no mato. Uma caixa de fósforos era um deleite para mim e dei-lhes uso, claro. Se fosse hoje dava prisão.


As tuas brincadeiras aos sete anos também dariam prisão no meu tempo.

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