quinta-feira, 7 de março de 2013

As cartas que o meu pai me há-de escrever. Parte III – Semente

Nunca fiz questão que estudasses muito. Nem pouco, pelo que me lembro.
Ponho-me a pensar se terá bastado pagar-te o colégio e ir buscar-te ao fim da tarde.
Às vezes ao fim da noite.

Devia ter insistido mais? Ainda vou a tempo de compensar?
Nem me lembro se tiveste boas notas. Mas lembro-me de te ver abatido nos tempos da faculdade.
Custou-me a pagar mas custou-me mais não te ter à mesa de jantar nas noites de escola.

Uma vez, em criança, apareceste para almoçar de cara marcada. Pela vergonha de admitir que a professora te batera, disseste ter sido um colega.
Era a primeira classe e enganaste-te nos deveres.
Fizeste o exercício errado. E apanhaste.

Anos depois consumiu-me a raiva e a vergonha que senti por tu, tão novo, andares em certas brincadeiras com o filho da vizinha.
Se eu tivesse sabido na altura que as tinhas também com a filha de outra vizinha, teria reagido de modo semelhante? Talvez igual.

O medo da opinião dos outros.
A imagem que têm de nós.
Somos iguais.

Sei que sofres e choras como eu em segredo. Sofres e choras por motivos que os outros não compreendem.
Compreendo eu que te fiz assim, sem saber.

És bom como ninguém. És bom como eu.
Sem nos gabarmos mas, ao mesmo tempo, orgulhosos por o sermos.

Tens o dom convincente da palavra e, às vezes, a rispidez de quem ama verdadeiramente.
Esse dom hás-de o ter ganho para compensar a timidez e vergonha dos outros.
  
Já te meteste em vários projectos.
Apesar de ser raro ver-te levar alguma coisa até ao fim, orgulho-me mesmo daquilo que não sei se fazes bem.

Gostei de te ouvir cantar porque o público aplaudiu.
Mas nem piano nem guitarra aprendeste a tocar.
Já é bom teres os instrumentos.
Pode ser que um dia lhes pegues.

Podias plantar uma árvore mas, pelos vistos, bastam-te os vasos na varanda e as amostras de plantas a que chamas jardim. Ainda te falta a paciência para esperar que uma árvore cresça.

Falta-te a persistência de um escritor para levar uma obra à conclusão. Jamais escreverias um livro.
Quanto muito um poema. De rima pobre.

E um filho não fazes.


Falta-te, paciência, persistência e muito mais.

Sem comentários:

Enviar um comentário